Por Alberto Maciel, Julia Beatriz e Guilherme Vasconcelos
Uma província: esta
A seção: 'Uma província: esta' possui poemas que retratam a cidade e o Estado natal de Carlos Drummond de Andrade, Itabira – Minas Gerais. Com um ar nostálgico, mas não sendo permeado por saudosismo, Drummond analisa o local de sua origem de maneira crítica e com subjetividade, como em 'Evocação mariana', e expõe muitos de seus anseios e traços pessoais, como em 'Confidência do Itabirano'. Além desses, demonstra um lado mais sombrio e oculto de Minas em 'Canção da moça-fantasma de Belo Horizonte', nunca esquecendo, porém, sua terra, mesmo vivendo no Rio de Janeiro, onde compõe 'prece de mineiro no rio'.
Tendo nascido em Itabira, filho de proprietários rurais, saiu do interior e foi morar em Belo Horizonte, onde adoeceu e teve que retornar, passando a ter aulas particulares. Em 1918, começou a estudar em Friburgo, Rio de Janeiro, depois voltando novamente a Itabira, onde começou a publicar no Diário de Minas. Ali ganhou um concurso de 50 mil reis da Novela Mineira e fundou 'A Revista', um dos veículos do modernismo mineiro.
Não satisfeito com a vida no interior, volta a Belo Horizonte, se tornando redator do Diário de Minas e ingressando no serviço público. Em 1934, muda-se para o Rio, onde passa a chefiar o Ministério da Educação. Seu estilo era pessimista e utilizava da ironia e do humor para retratar situações no dia a dia, fazendo retratos subjetivos da realidade por meio da poesia.
Confidência
do itabirano
Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e
comunicação.
A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e
sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.
De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil,
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de
visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!
Análise: Em “Confidência do itabirano”, Carlos Drummond remonta a sua cidade natal com sentimento nostálgico, falando de suas origens e como sente falta de sua terra. O sentimento de dispersão presente no texto é visto como consequência de um isolamento social oriundo de um personagem em decadência, como em : 'Tive ouro, tive gado, tive fazendas' 'Hoje sou funcionário público'. Não só a saudade da cidade natal, o poema demonstra a preocupação com o futuro desta, visto que o país se modernizava, esquecendo-a. Referências à grande área de exploração de ferro existente em Itabira também podem ser notadas através do texto, como em: 'Noventa por cento de ferro nas calçadas' e 'Oitenta por cento de ferro nas almas'.
Evocação mariana
A
igreja era grande e pobre. Os altares, humildes.
Havia poucas flores. Eram flores de horta.
Sob a luz fraca, na sombra esculpida
(quais as imagens e quais os fiéis?)
ficávamos.
Do padre cansado o murmúrio de reza
subia às tábuas do forro,
batia no púlpito seco,
entranhava-se na onda, minúscula e forte, de incenso,
perdia-se.
Não, não se perdia...
Desatava-se do coro a música deliciosa
(que esperas ouvir à hora da morte, ou depois da morte, nas campinas do ar)
e dessa música surgiam meninas – a alvura mesma –
cantando.
De seu peso terrestre a nave libertada,
como do tempo atroz imunes nossas almas,
flutuávamos
no canto matinal, sobre a treva do vale.
Análise: Em “Evocação
mariana”, Carlos Drummond retrata uma igreja simples, em Mariana-MG, que, mesmo
com poucos recursos, sobrevive, destacando a religião e não dando importância
aos meios materiais. É possível notar a descrição dos altares, da reza regida
pelo padre, o cheiro de incenso característico e a aproximação com a religião
por meio da música, como em 'Desatava-se do coro a música deliciosa', ou pela
própria fé e ambientação, como em 'entranhava-se na onda, minúscula e forte, de
incenso, perdia-se'. Drummond já afirmou em um de seus textos que, quando
estava vagando por Mariana, imaginou, ao olhar para uma igreja, que os anjos
fossem pequenas meninas, as quais, para ele, eram carregadas de delicadeza e
leveza, o que bem caracterizaria um anjo. Esse pensamento é presente no texto
em: 'e dessa música surgiam meninas – a alvura mesma – cantando.'. A imaginação
e a fé de Drummond fluíam em sua mente, o fazendo, em contato com a igreja, se
sentir mais leve e puro, retratado em: ' como do tempo atroz imunes nossas
almas,'
'flutuávamos' 'no canto matinal, sobre a treva do vale.'
Canção da Moça Fantasma de Belo Horizonte
Eu sou a Moça-Fantasma
que espera na Rua do Chumbo
o carro da madrugada.
Eu sou branca e longa e fria,
a minha carne é um suspiro
na madrugada da serra.
Eu sou a Moça-Fantasma. O meu nome era Maria,
Maria-Que-Morreu-Antes.
Sou a vossa namorada
que morreu de apendicite,
no desastre de automóvel
ou suicidou-se na praia
e seus cabelos ficaram
longos na vossa lembrança.
Eu nunca fui deste mundo:
Se beijava, minha boca
dizia de outros planetas
em que os amantes se queimam
num fogo casto e se tornam
estrelas, sem irônia.
Morri sem ter tido tempo
de ser vossa, como as outras.
Não me conformo com isso,
e quando as polícias dormem
em mim e foi-a de mim,
meu espectro itinerante
desce a Serra do Curral,
vai olhando as casas novas,
ronda as hortas amorosas
(Rua Cláudio Manuel da Costa),
pára no Abrigo Ceará,
nao há abrigo. Um perfume
que não conheço me invade:
é o cheiro do vosso sono
quente, doce, enrodilhado
nos braços das espanholas.
– Oh! deixai-me dormir convosco.
E vai, como não encontro
nenhum dos meus namorados,
que as francesas conquistaram,
e cine beberam todo o uísque
existente no Brasil
(agora dormem embriagados),
espreito os Carros que passam
com choferes que não suspeitam
de minha brancura e fogem.
Os tímidos guardas-civis,
coitados! um quis me prender.
Abri-lhe os braços... Incrédulo,
me apalpou. Não tinha carne
e por cima do vestido
e por baixo do vestido
era a mesma ausência branca,
um só desespero branco...
Podeis ver: o que era corpo
foi comido pelo gato.
As moças que’ ainda estão vivas
(hão de morrer, ficai certos)
têm medo que eu apareça
e lhes puxe a perna... Engano.
Eu fui moça, Serei moça
deserta, per omnia saecula.
Não quero saber de moças.
Mas os moços me perturbam.
Não sei como libertar-me.
Se o fantasma não sofresse,
se eles ainda me gostassem
e o espiritismo consentisse,
mas eu sei que é proibido
vós sois carne, eu sou vapor.
Um vapor que se dissolve
quando o sol rompe na Serra.
Agora estou consolada,
disse tu do que queria,
subirei àquela nuvem,
serei lâmina gelada,
cintilarei sobre os homens.
Meu reflexo na piscina da Avenida Paraúna
(estrelas não se compreendem),
ninguém o compreenderá.
Análise: Nesse poema, Drummond é a voz de uma alma solitária que vaga
pelas ruas de Belo Horizonte, perdida em vida, ao afirmar nunca ter sido deste
mundo, mas inconformada com a morte e presa às lembranças do que foi vivido.
A alma se denomina Maria-que-morreu-antes, o que faz alusão
às várias “Marias” que morrem tendo deixado de lado seus desejos e anseios, sem
realizá-los em função dos afazeres rotineiros, como se passassem a vida presas
à rotina, situações na época criticadas pelo autor que, entretanto, se
perpetuam nos dias hodiernos. Assim, notam-se críticas, porém em um tom
espectral característico do poema.
O poema também compreende críticas ao individualismo da
sociedade moderna, no sentido de que as pessoas não notavam umas às outras,
pois estavam concentradas em sua vida, suas tarefas, seu trabalho, que tornava
as pessoas a volta simples fantasmas. Nisso, Moça Fantasma não era notada,
assim, diante da sensação de ser invisível, só restava a solidão e perambular
nas ruas apenas observando.
Moça Fantasma, no poema, expõe que tinha um desejo carnal de
ser possuída, porém Maria-que-morreu-antes morreu na virgindade. Por isso, há
uma alusão a essa pureza ao citar sempre a sua brancura, que por baixo do
vestido havia a ausência branca, além de afirmar que foi moça e será moça.
Todavia, há uma inquietação sobre isso, pois Moça Fantasma diz que os moços a
perturbam e que ela não sabe como se libertar, apesar de ter consciência de que
não é mais carne e sim vapor. Vapor que é capaz de até se dissolver, porém, não
de ser possuído.
Nesse sentido, evidencia-se uma saudade do que nunca foi
vivido. No poema, Drummond critica a sociedade num tom lúgubre, porém de forma
realista. A literatura se apresenta como instrumento capaz de representar
visões críticas podendo essas serem positivas ou negativas acerca da sociedade.
No poema, o autor se apresenta descontente com os danos da modernidade às
relações interpessoais em relação à perda de laços, perda da sensibilidade para
com o outro, marcada pela violência e rispidez entre os indivíduos, além da
imensa falta de compaixão que há, pois ninguém se põe no alguém ou enxerga
realmente outro ser, assim, as pessoas acabam sendo no fundo, simplesmente fantasmas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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