quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Uma província, uma confidência, uma certa evocação, ao som da Moça Fantasma!

 

Por Alberto Maciel, Julia Beatriz e Guilherme Vasconcelos


Uma província: esta


          A seção: 'Uma província: esta' possui poemas que retratam a cidade e o Estado natal de Carlos Drummond de Andrade, Itabira – Minas Gerais. Com um ar nostálgico, mas não sendo permeado por saudosismo, Drummond analisa o local de sua origem de maneira crítica e com subjetividade, como em 'Evocação mariana', e expõe muitos de seus anseios e traços pessoais, como em 'Confidência do Itabirano'. Além desses, demonstra um lado mais sombrio e oculto de Minas em 'Canção da moça-fantasma de Belo Horizonte', nunca esquecendo, porém, sua terra, mesmo vivendo no Rio de Janeiro, onde compõe 'prece de mineiro no rio'.


            Tendo nascido em Itabira, filho de proprietários rurais, saiu do interior e foi morar em Belo Horizonte, onde adoeceu e teve que retornar, passando a ter aulas particulares. Em 1918, começou a estudar em Friburgo, Rio de Janeiro, depois voltando novamente a Itabira, onde começou a publicar no Diário de Minas. Ali ganhou um concurso de 50 mil reis da Novela Mineira e fundou 'A Revista', um dos veículos do modernismo mineiro.


             Não satisfeito com a vida no interior, volta a Belo Horizonte, se tornando redator do Diário de Minas e ingressando no serviço público. Em 1934, muda-se para o Rio, onde passa a chefiar o Ministério da Educação. Seu estilo era pessimista e utilizava da ironia e do humor para retratar situações no dia a dia, fazendo retratos subjetivos da realidade por meio da poesia.


Confidência do itabirano


Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.


A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.


De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil,
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...


Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!

Análise: Em “Confidência do itabirano”, Carlos Drummond remonta a sua cidade natal com sentimento nostálgico, falando de suas origens e como sente falta de sua terra. O sentimento de dispersão presente no texto é  visto como consequência de um isolamento social oriundo de um personagem em decadência, como em : 'Tive ouro, tive gado, tive fazendas' 'Hoje sou funcionário público'. Não só a saudade da cidade natal, o poema demonstra a preocupação com o futuro desta, visto que o país se modernizava, esquecendo-a. Referências à grande área de exploração de ferro existente em Itabira também podem ser notadas através do texto, como em: 'Noventa por cento de ferro nas calçadas' e 'Oitenta por cento de ferro nas almas'.


Evocação mariana


A igreja era grande e pobre. Os altares, humildes.
Havia poucas flores. Eram flores de horta.
Sob a luz fraca, na sombra esculpida
(quais as imagens e quais os fiéis?)
ficávamos.

Do padre cansado o murmúrio de reza
subia às tábuas do forro,
batia no púlpito seco,
entranhava-se na onda, minúscula e forte, de incenso,
perdia-se.
Não, não se perdia...
Desatava-se do coro a música deliciosa
(que esperas ouvir à hora da morte, ou depois da morte, nas campinas do ar)
e dessa música surgiam meninas – a alvura mesma –
cantando.

De seu peso terrestre a nave libertada,
como do tempo atroz imunes nossas almas,
flutuávamos
no canto matinal, sobre a treva do vale
.


Análise: Em “Evocação mariana”, Carlos Drummond retrata uma igreja simples, em Mariana-MG, que, mesmo com poucos recursos, sobrevive, destacando a religião e não dando importância aos meios materiais. É possível notar a descrição dos altares, da reza regida pelo padre, o cheiro de incenso característico e a aproximação com a religião por meio da música, como em 'Desatava-se do coro a música deliciosa', ou pela própria fé e ambientação, como em 'entranhava-se na onda, minúscula e forte, de incenso, perdia-se'. Drummond já afirmou em um de seus textos que, quando estava vagando por Mariana, imaginou, ao olhar para uma igreja, que os anjos fossem pequenas meninas, as quais, para ele, eram carregadas de delicadeza e leveza, o que bem caracterizaria um anjo. Esse pensamento é presente no texto em: 'e dessa música surgiam meninas – a alvura mesma – cantando.'. A imaginação e a fé de Drummond fluíam em sua mente, o fazendo, em contato com a igreja, se sentir mais leve e puro, retratado em: ' como do tempo atroz imunes nossas almas,'
'flutuávamos' 'no canto matinal, sobre a treva do vale.'


Canção da Moça Fantasma de Belo Horizonte

Eu sou a Moça-Fantasma 
que espera na Rua do Chumbo
o carro da madrugada.
 
Eu sou branca e longa e fria,
a minha carne é um suspiro
 
na madrugada da serra.
 
Eu sou a Moça-Fantasma. O meu nome era Maria,
 
Maria-Que-Morreu-Antes.

Sou a vossa namorada
 
que morreu de apendicite,
 
no desastre de automóvel
 
ou suicidou-se na praia
 
e seus cabelos ficaram
 
longos na vossa lembrança.
 
Eu nunca fui deste mundo:
Se beijava, minha boca
 
dizia de outros planetas
 
em que os amantes se queimam
 
num fogo casto e se tornam
 
estrelas, sem irônia.
Morri sem ter tido tempo
 
de ser vossa, como as outras.
 
Não me conformo com isso,
 
e quando as polícias dormem
 
em mim e foi-a de mim,
 
meu espectro itinerante
 
desce a Serra do Curral,
 
vai olhando as casas novas,
ronda as hortas amorosas
 
(Rua Cláudio Manuel da Costa),
 
pára no Abrigo Ceará,
 
nao há abrigo. Um perfume
 
que não conheço me invade:

é o cheiro do vosso sono
 
quente, doce, enrodilhado
 
nos braços das espanholas.
 
– Oh! deixai-me dormir convosco.

E vai, como não encontro
nenhum dos meus namorados,
que as francesas conquistaram,
e cine beberam todo o uísque
existente no Brasil
 
(agora dormem embriagados),
 
espreito os Carros que passam
 
com choferes que não suspeitam
 
de minha brancura e fogem.
 
Os tímidos guardas-civis,
 
coitados! um quis me prender.
 
Abri-lhe os braços... Incrédulo,
 
me apalpou. Não tinha carne
 
e por cima do vestido
 
e por baixo do vestido
 
era a mesma ausência branca,
 
um só desespero branco...
Podeis ver: o que era corpo
foi comido pelo gato.

As moças que’ ainda estão vivas
 
(hão de morrer, ficai certos)
 
têm medo que eu apareça
 
e lhes puxe a perna... Engano.
Eu fui moça, Serei moça
deserta, per omnia saecula.

Não quero saber de moças.
 
Mas os moços me perturbam.
 
Não sei como libertar-me.
Se o fantasma não sofresse,
 
se eles ainda me gostassem
 
e o espiritismo consentisse,
 
mas eu sei que é proibido
 
vós sois carne, eu sou vapor.

Um vapor que se dissolve
 
quando o sol rompe na Serra.

Agora estou consolada,
 
disse tu do que queria,
 
subirei àquela nuvem,
 
serei lâmina gelada,
 
cintilarei sobre os homens.
Meu reflexo na piscina da Avenida Paraúna
 
(estrelas não se compreendem),
 
ninguém o compreenderá.

Análise: Nesse poema, Drummond é a voz de uma alma solitária que vaga pelas ruas de Belo Horizonte, perdida em vida, ao afirmar nunca ter sido deste mundo, mas inconformada com a morte e presa às lembranças do que foi vivido.
A alma se denomina Maria-que-morreu-antes, o que faz alusão às várias “Marias” que morrem tendo deixado de lado seus desejos e anseios, sem realizá-los em função dos afazeres rotineiros, como se passassem a vida presas à rotina, situações na época criticadas pelo autor que, entretanto, se perpetuam nos dias hodiernos. Assim, notam-se críticas, porém em um tom espectral característico do poema.
O poema também compreende críticas ao individualismo da sociedade moderna, no sentido de que as pessoas não notavam umas às outras, pois estavam concentradas em sua vida, suas tarefas, seu trabalho, que tornava as pessoas a volta simples fantasmas. Nisso, Moça Fantasma não era notada, assim, diante da sensação de ser invisível, só restava a solidão e perambular nas ruas apenas observando.
Moça Fantasma, no poema, expõe que tinha um desejo carnal de ser possuída, porém Maria-que-morreu-antes morreu na virgindade. Por isso, há uma alusão a essa pureza ao citar sempre a sua brancura, que por baixo do vestido havia a ausência branca, além de afirmar que foi moça e será moça. Todavia, há uma inquietação sobre isso, pois Moça Fantasma diz que os moços a perturbam e que ela não sabe como se libertar, apesar de ter consciência de que não é mais carne e sim vapor. Vapor que é capaz de até se dissolver, porém, não de ser possuído.
Nesse sentido, evidencia-se uma saudade do que nunca foi vivido. No poema, Drummond critica a sociedade num tom lúgubre, porém de forma realista. A literatura se apresenta como instrumento capaz de representar visões críticas podendo essas serem positivas ou negativas acerca da sociedade. No poema, o autor se apresenta descontente com os danos da modernidade às relações interpessoais em relação à perda de laços, perda da sensibilidade para com o outro, marcada pela violência e rispidez entre os indivíduos, além da imensa falta de compaixão que há, pois ninguém se põe no alguém ou enxerga realmente outro ser, assim, as pessoas acabam sendo no fundo, simplesmente fantasmas. 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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